sábado, 4 de julho de 2015

Sou eu

Sou Eu

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo, 
Espécie de acessório ou sobressalente próprio, 
Arredores irregulares da minha emoção sincera, 
Sou eu aqui em mim, sou eu. 

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. 
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma. 
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim. 

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente, 
Como de um sonho formado sobre realidades mistas, 
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico, 
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima. 

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua, 
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda, 
De haver melhor em mim do que eu. 

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa, 
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores, 
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho, 
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas, 
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida. 

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica, 
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar, 
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo — 
A impressão de pão com manteiga e brinquedos 
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina, 
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela, 
Num ver chover com som lá fora 
E não as lágrimas mortas de custar a engolir. 

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado, 
O emissário sem carta nem credenciais, 
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro, 
A quem tinem as campainhas da cabeça 
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima. 

Sou eu mesmo, a charada sincopada 
Que ninguém da roda decifra nos serões de província. 

Sou eu mesmo, que remédio! ... 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa 

4 comentários:

  1. Beleza de poema escolhido! Um lindo fim de semana! bjs, chica

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  2. Olá, Argos.

    Fernando Pessoa escolhia sempre este heterónimo, quando se sentia mais amargo ou amargurado...Expressava, assim, uma espécie de rejeição ou cansaço, não sei...da sua face mais negra e dolorida, que, afinal, todos guardamos no fundo da nossa alma!...

    Todos temos o nosso EU contraditório, e nem sempre convivemos bem com 'ele'...Eu que o diga!!

    Beijinhos amigos e solidários com todos os teus "EUS"...

    Um Grande Abraço!

    Bom fim de semana, Argos.

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  3. Muito lindo!

    Boa semana com muita saúde e muita harmonia!
    Beijinhos¸⋰˚✿
    ✿¸⋰˚✿

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  4. Amigo Argos,

    Em Fernando Pessoa e/ou em algum dos seus heterónimos há sempre um poema, um texto, uma frase com que nos identificamos qualquer que seja o nosso estado de alma.

    Bela escolha!...

    Um imenso abraço

    ResponderEliminar

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